Morte e Vida Severina - Canto 12

Songs   2024-11-13 22:54:50

Morte e Vida Severina - Canto 12

APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO

— Seu José, mestre carpina,

que habita este lamaçal,

sabes me dizer se o rio

a esta altura dá vau?

sabes me dizer se é funda

esta água grossa e carnal?

— Severino, retirante,

jamais o cruzei a nado;

quando a maré está cheia

vejo passar muitos barcos,

barcaças, alvarengas,

muitas de grande calado.

— Seu José, mestre carpina,

para cobrir corpo de homem

não é preciso muito água:

basta que chega o abdome,

basta que tenha fundura

igual à de sua fome.

— Severino, retirante

pois não sei o que lhe conte;

sempre que cruzo este rio

costumo tomar a ponte;

quanto ao vazio do estômago,

se cruza quando se come.

— Seu José, mestre carpina,

e quando ponte não há?

quando os vazios da fome

não se tem com que cruzar?

quando esses rios sem água

são grandes braços de mar?

— Severino, retirante,

o meu amigo é bem moço;

sei que a miséria é mar largo,

não é como qualquer poço:

mas sei que para cruzá-la

vale bem qualquer esforço.

— Seu José, mestre carpina,

e quando é fundo o perau?

quando a força que morreu

nem tem onde se enterrar,

por que ao puxão das águas

não é melhor se entregar?

— Severino, retirante,

o mar de nossa conversa

precisa ser combatido,

sempre, de qualquer maneira,

porque senão ele alarga

e devasta a terra inteira.

— Seu José, mestre carpina,

e em que nos faz diferença

que como frieira se alastre,

ou como rio na cheia,

se acabamos naufragados

num braço do mar miséria?

— Severino, retirante,

muita diferença faz

entre lutar com as mãos

e abandoná-las para trás,

porque ao menos esse mar

não pode adiantar-se mais.

— Seu José, mestre carpina,

e que diferença faz

que esse oceano vazio

cresça ou não seus cabedais

se nenhuma ponte mesmo

é de vencê-lo capaz?

— Seu José, mestre carpina,

que lhe pergunte permita:

há muito no lamaçal

apodrece a sua vida?

e a vida que tem vivido

foi sempre comprada à vista?

— Severino, retirante,

sou de Nazaré da Mata,

mas tanto lá como aqui

jamais me fiaram nada:

a vida de cada dia

cada dia hei de comprá-la.

— Seu José, mestre carpina,

e que interesse, me diga,

há nessa vida a retalho

que é cada dia adquirida?

espera poder um dia

comprá-la em grandes partidas?

— Severino, retirante,

não sei bem o que lhe diga:

não é que espere comprar

em grosso tais partidas,

mas o que compro a retalho

é, de qualquer forma, vida.

— Seu José, mestre carpina,

que diferença faria

se em vez de continuar

tomasse a melhor saída:

a de saltar, numa noite,

fora da ponte e da vida?

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  • country:Brazil
  • Languages:Portuguese
  • Genre:Poetry
  • Official site:http://www.academia.org.br/academicos/joao-cabral-de-melo-neto
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