Morte e Vida Severina - Canto 6

Songs   2024-11-14 11:34:31

Morte e Vida Severina - Canto 6

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE

QUEM SE SABERÁ

— Muito bom dia, senhora,

que nessa janela está;

sabe dizer se é possível

algum trabalho encontrar?

— Trabalho aqui nunca falta

a quem sabe trabalhar;

o que fazia o compadre

na sua terra de lá?

— Pois fui sempre lavrador,

lavrador de terra má;

não há espécie de terra

que eu não possa cultivar.

— Isso aqui de nada adianta,

pouco existe o que lavrar;

mas diga-me, retirante,

o que mais fazia por lá?

— Também lá na minha terra

de terra mesmo pouco há;

mas até a calva da pedra

sinto-me capaz de arar.

— Também de pouco adianta,

nem pedra há aqui que amassar;

diga-me ainda, compadre,

que mais fazias por lá?

— Conheço todas as roças

que nesta chã podem dar;

o algodão, a mamona,

a pita, o milho, o caroá.

— Esses roçados o banco

já não quer financiar;

mas diga-me, retirante,

o que mais fazia lá?

— Melhor do que eu ninguém

sei combater, quiçá,

tanta planta de rapina

que tenho visto por cá.

— Essas plantas de rapina

são tudo o que a terra dá;

diga-me ainda, compadre

que mais fazia por lá?

— Tirei mandioca de chãs

que o vento vive a esfolar

e de outras escalavras

pela seca faca solar.

— Isto aqui não é Vitória

nem é Glória do Goitá;

e além da terra, me diga,

que mais sabe trabalhar?

— Sei também tratar de gado,

entre urtigas pastorear;

gado de comer do chão

ou de comer ramas no ar.

— Aqui não é Surubim

nem Limoeiro, oxalá!

mas diga-me, retirante,

que mais fazia por lá?

— Em qualquer das cinco tachas

de um bangüê sei cozinhar;

sei cuidar de uma moenda,

de uma casa de purgar.

— Com a vinda das usinas

há poucos engenhos já;

nada mais o retirante

aprendeu a fazer lá?

— Ali ninguém aprendeu

outro ofício, ou aprenderá;

mas o sol, de sol a sol,

bem se aprende a suportar.

— Mas isso então será tudo

em que sabe trabalhar?

vamos, diga, retirante,

outras coisas saberá.

— Deseja mesmo saber

o que eu fazia por lá?

comer quando havia o quê

e, havendo ou não, trabalhar.

— Essa vida por aqui

é coisa familiar;

mas diga-me retirante,

sabe benditos rezar?

sabe cantar excelências,

defuntos encomendar?

sabe tirar ladainhas,

sabe mortos enterrar?

— Já velei muitos defuntos,

na serra é coisa vulgar;

mas nunca aprendi as rezas,

sei somente acompanhar.

— Pois se o compadre soubesse

rezar ou mesmo cantar,

trabalhávamos a meias,

que a freguesia bem dá.

— Agora se me permite

minha vez de perguntar:

como senhora, comadre,

pode manter o seu lar?

— Vou explicar rapidamente,

logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta,

vivo de a morte ajudar.

— E ainda se me permite

que volte a perguntar:

é aqui uma profissão

trabalho tão singular?

— É, sim, uma profissão,

e a melhor de quantas há:

sou de toda a região

rezadora titular.

— E ainda se me permite

mais outra vez indagar:

é boa essa profissão

em que a comadre ora está?

— De um raio de muitas léguas

vem gente aqui me chamar;

a verdade é que não pude

queixar-me ainda de azar.

— E se pela última vez

me permite perguntar:

não existe outro trabalho

para mim nesse lugar?

— Como aqui a morte é tanta,

só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.

Imagine que outra gente

de profissão similar,

farmacêuticos, coveiros,

doutor de anel no anular,

remando contra a corrente

da gente que baixa ao mar,

retirantes às avessas,

sobem do mar para cá.

Só os roçados da morte

compensam aqui cultivar,

e cultivá-los é fácil:

simples questão de plantar;

não se precisa de limpa,

de adubar nem de regar;

as estiagens e as pragas

fazemos mais prosperar;

e dão lucro imediato;

nem é preciso esperar

pela colheita: recebe-se

na hora mesma de semear

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João Cabral de Melo Neto more
  • country:Brazil
  • Languages:Portuguese
  • Genre:Poetry
  • Official site:http://www.academia.org.br/academicos/joao-cabral-de-melo-neto
  • Wiki:https://pt.wikipedia.org/wiki/João_Cabral_de_Melo_Neto
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