Carlos Rennó - Demarcação já!

Songs   2024-12-24 20:20:48

Carlos Rennó - Demarcação já!

Já que depois de mais de cinco séculos

E de ene ciclos de etnogenocídio,

O índio vive, em meio a mil flagelos,

Já tendo sido morto e renascido,

Tal como o povo kadiwéu e o panará

– Demarcação já!

Demarcação já!

Já que diversos povos vêm sendo atacados,

Sem vir a ver a terra demarcada,

A começar pela primeira no Brasil

Que o branco invadiu já na chegada:

A do tupinambá –

Demarcação já!

Demarcação já!

Já que, tal qual as obras da Transamazônica,

Quando os milicos os chamavam de silvícolas,

Hoje um projeto de outras obras faraônicas,

Correndo junto da expansão agrícola,

Induz a um indicídio, vide o povo kaiowá,

Demarcação já!

Demarcação já!

Já que tem bem mais latifúndio em desmesura

Que terra indígena pelo país afora;

E já que o latifúndio é só monocultura,

Mas a T.I. é polifauna e pluriflora,

Ah!,

Demarcação já!

Demarcação já!

E um tratoriza, motosserra, transgeniza,

E o outro endeusa e diviniza a natureza:

O índio a ama por sagrada que ela é,

E o ruralista, pela grana que ela dá;

Hum… Bah!

Demarcação já!

Demarcação já!

Já que por retrospecto só o autóc

Tone mantém compacta e muito intacta,

E não impacta, e não infecta, e se

Conecta e tem um pacto com a mata

–Sem a qual a água acabará –,

Demarcação já!

Demarcação já!

Pra que não deixem nem terras indígenas

Nem unidades de conservação

Abertas como chagas cancerígenas

Pelos efeitos da mineração

E de hidrelétricas no ventre da Amazônia, em Rondônia, no Pará…

Demarcação já!

Demarcação já!

Já que “tal qual o negro e o homossexual,

O índio é ‘tudo que não presta'”, como quer

Quem quer tomar-­lhe tudo que lhe resta,

Seu território, herança do ancestral,

E já que o que ele quer é o que é dele já,

Demarcação, “tá”?

Demarcação já!

Pro índio ter a aplicação do Estatuto

Que linde o seu rincão qual um reduto,

E blinde-­o contra o branco mau e bruto

Que lhe roubou aquilo que era seu,

Tal como aconteceu, do pampa ao Amapá,

Demarcação lá!

Demarcação já!

Já que é assim que certos brancos agem:

Chamando-­os de selvagens, se reagem,

E de não índios, se nem fingem reação

À violência e à violação

De seus direitos, de Humaitá ao Jaraguá;

Demarcação já!

Demarcação já!

Pois índio pode ter iPad, freezer, TV, caminhonete, “voadeira”,

Que nem por isso deixa de ser índio

Nem de querer e ter na sua aldeia

Cuia, canoa, cocar, arco, maracá.

Demarcação já!

Demarcação já!

Pra que o indígena não seja um indigente,

Um alcoólatra, um escravo ou exilado,

Ou acampado à beira duma estrada,

Ou confinado e no final um suicida,

Já velho ou jovem ou – pior – piá.

Demarcação já!

Demarcação já!

Por nós não vermos como natural

A sua morte sociocultural;

Em outros termos, por nos condoermos –

E termos como belo e absoluto

Seu contributo do tupi ao tucupi, do guarani ao guaraná.

Demarcação já!

Demarcação já!

Pois guaranis e makuxis e pataxós

Estão em nós, e somos nós, pois índio é nós;

É quem dentro de nós a gente traz, aliás,

De kaiapós e kaiowás somos xarás,

Xará.

Demarcação já!

Demarcação já!

Pra não perdermos com quem aprender

A comover-­nos ao olhar e ver

As árvores, os pássaros e rios,

A chuva, a rocha, a noite, o sol, a arara

E a flor de maracujá,

Demarcação já!

Demarcação já!

Pelo respeito e pelo direito

À diferença e à diversidade

De cada etnia, cada minoria,

De cada espécie da comunidade

De seres vivos que na Terra ainda há,

Demarcação já!

Demarcação já!

Por um mundo melhor ou, pelo menos,

Algum mundo por vir; por um futuro

Melhor ou, oxalá, algum futuro;

Por eles e por nós, por todo mundo,

Que nessa barca junto todo mundo “tá”,

Demarcação já!

Demarcação já!

Já que depois que o enxame de Ibirapueras

E de Maracanãs de mata for pro chão,

Os yanomami morrerão deveras,

Mas seus xamãs seu povo vingarão,

E sobre a humanidade o céu cairá,

Demarcação já!

Demarcação já!

Já que, por isso, o plano do krenak encerra

Cantar, dançar, pra suspender o céu;

E indígena sem terra é todos sem a Terra,

É toda a civilização ao léu

Ao deus­-dará.

Demarcação já!

Demarcação já!

Sem mais embromação na mesa do Palácio,

Nem mais embaço na gaveta da Justiça,

Nem mais demora nem delonga no processo,

Nem retrocesso nem pendenga no Congresso,

Nem lengalenga, nenhenhém nem blablablá!

Demarcação já!

Demarcação já!

Pra que nas terras finalmente demarcadas,

Ou autodemarcadas pelos índios,

Nem madeireiros, garimpeiros, fazendeiros,

Mandantes nem capangas nem jagunços,

Milícias nem polícias os afrontem.

Vrá!

Demarcação ontem!

Demarcação já!

E deixa o índio, deixa o índio, deixa os índios lá.

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  • country:Brazil
  • Languages:Portuguese
  • Genre:Poetry
  • Official site:http://carlosrenno.com
  • Wiki:https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Renn%C3%B3
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